domingo, 1 de agosto de 2010

Humildade, Virtude Cristã

Humildade é um dos termos mais ambíguos da linguagem espiritual e religiosa. Com o pretexto de salvaguardar suas exigências, legitimaram-se abdicações falazes. Seu crescimento está unido a todo amadurecimento da personalidade moral e religiosa. Seu desenvolvimento acompanha e estimula a libertação da liberdade desde suas expressões iniciais até as metas supremas. Sua falsificação avaliza os atos arbitrários dos poderosos e os servilismos dos miseráveis. A humildade é prerrogativa que qualifica o homem em si mesmo e nas relações que constrói, e que brota do amor e define o conceito da realidade e da vida. E estilo de vida que se expressa no reconhecimento da dignidade humana na própria pessoa, em si mesmo, e nos outros, e que cresce em comunhão com Jesus Cristo, no respeito ao Pai e na laboriosa construção das relações entre os seres humanos. É atitude articulada que se nutre de pobreza e dignidade. É caminho de identidade, não reivindicação de autonomias. É reconhecimento de derivação, não proclamação de anonimato ou de nulidade. É afirmação de talentos que é preciso negociar e não enterrar. É solidariedade a ser construída pelo caminho longo e paciente do convencer-se, afastando as tentações de coação ou de manipulação. A humildade foge do formalismo farisaico das auto-suficiências orgulhosas; do servilismo mendigo, esnobista, simbiótico, pegajoso, e de todas as exaltações despóticas e ultrajantes. Repele a resignação desesperada, abdicante, que faz da preguiça parasitária o árbitro do limite das possibilidades humanas, bem como a presunção temerária que induz a manipular a realidade e a tentar o absurdo. A humildade cresce com o risco das realizações e das opções, não esquece o limite e a precariedade, liberta as aspirações; combate o fatalismo, que considera espontânea a transformação das situações e a eliminação das desordens, que retraçam e desviam o crescimento da humanidade; reequilibra os desejos e modera as pretensões ambiciosas e idolátricas, que mergulham suas raízes no terreno fecundo das cobiças ávidas (cf. Cl 3,5). Antes que uma série de atitudes a serem adotadas, a humildade é modo de ser e de relacionar-se. Caracteriza o homem no modo de avaliar e aceitar a si mesmo e na posição que adota no mundo e diante de Deus. É dimensão antropológica, e configura-se segundo a orientação de quem a vive e o contexto em que se acha inserido. As representações da humildade variam de acordo com o juízo que o homem faz de si mesmo, de sua posição no mundo e diante de Deus, das situações e dos estilos de existência. Como qualificativo do homem em suas relações sociais, é estilo de participação e de obediência, que varia segundo o modo de conceber ambas. Mas, relacionadas entre si, a humildade se considera tanto como moderação da autopresunção, do orgulho e das complexas situações em que uma e outro se expressam, como abnegação e renúncia que o homem se impõe ou aceita, quanto como qualificativo da liberdade que amadurece no modo de viver as tensões e os conflitos. Em relação a Deus é libertação do reconhecimento e do louvor do temor filial; erradica as tendências à autossuficiência idolátrica, que impedem que ele seja reconhecido em solidariedade com os outros e num serviço libertador prestado ao mundo. “[1]

Etimologia

Humildade (humilitas) vem do latim humus que significa “filhos da terra”. Refere-se à qualidade daqueles que não tentam se projetar sobre as outras pessoas, nem mostrar ser superior a elas. A Humildade é a virtude que dá o sentimento exato da nossa fraqueza, modéstia, respeito, pobreza, reverência e submissão.  “Não são muitos os contextos em que aparecem palavras aparentadas com tapeinos, que é o equivalente neotestamentário a humilde. Não aparece em Marcos nem no corpo joânico, e a maior parte das vezes encontra-se num logion estruturado conforme a oposição entre humildes e orgulhosos, entre rebaixar e levantar: quem se rebaixa será levantado e vice-versa (Mt 23,12; Lc 1,52; 14,11; 18,4; 2Cor 11,7; Tg 1,9; 4,10; 1Pd 5,6). De outros textos se deduz que é ‘humilde’ o caminho que Deus escolheu e quer, e no qual introduz os pobres e os pequenos, a quem dá preferência diante dos ricos e dos poderosos (Lc 1,52; cf. Sf 2,3; Mt 5,3; Lc 6,20); os quais consola (2Cor 7,6) e a quem, como já fora dito em Pr 3,34, concede a graça de que priva os soberbos (lPd 5,5; Tg 4,6); é a atitude com que se caracteriza Jesus (Mt 11,29; cf. 21,5) e o caminho que percorreu até a meta suprema (Fl 2,8); a atitude que distingue a filha de Sião, o povo de Deus, Maria (Lc 1,48); a atitude que Paulo adota no serviço ao Senhor (At 20,19); a que Jesus inculca (Mt 18,4) e que os apóstolos tentam fomentar (Rm 12,16; Ef 4,2; FI 2,3; Cl 3,12; Tg 4,10; 1Pd 5,5.6). Em Ef 4,2 e em Cl 3,12 encontra-se a combinação manso-humilde, embora na forma abstrata de mansidão-humildade e, em ambos os casos, a humildade esteja unida à macrothymia, à paciência e à tolerância. Em Cl 3,12 a humildade se une à splanchma, compaixão, que é a atitude de onde brota como de fonte a ação de Jesus. À luz desta mediação, vê-se que o coração humilde, que no logion de Mt 11,29 é aliviado e libertado das cargas pesadas, é rico em misericórdia e em compaixão para com a miséria humana. Em certa ocasião, o termo expressa também a condição do corpo destinado a ser transfigurado por Cristo (Fl 3,21).
Temos, enfim, o contexto muito discutido de Cl 2, 18 e 23, em que tapeinofrosyne, combinada com outras atitudes, parece ter significado pejorativo e expressa antes aquela falsa mentalidade que aprisiona na mesquinhez, que vincula ao cumprimento de práticas pouco importantes e a comportamentos afetados e enganadores. Encontramos especialmente no vocabulário paulino o verbo kauchaomai, que, como sinônimo e como contrário, designa a dignidade corajosa da pessoa humilde e denota as falsificações a que conduz a pueril autossuficiência, que gostaria de se fazer valer até mesmo diante de Deus. As versões modernas recorrem às expressões mais diversas para traduzir os derivados deste verbo, que designa as realidades mais diferentes. De fato, expressa a pretensa segurança do homem autossuficiente, que está satisfeito e se vangloria da justiça de suas obras (os judaizantes, cf. Rm 2,17-23) ou da sutileza e perspicácia de suas intuições (os helenizantes, cf.Rm 1,18ss), e que não vê ou esquece que tudo o que o homem é ou possui é dom e graça de Deus jcf. Rm 3,27; 11,18; 1Cor 1,29-31; 4,7; Gl 6,13). Mas o mesmo verbo expressa também a digna, serena e, em certo sentido, forte confiança em Deus (Rm 5,11; 15,17), que Jesus Cristo confere como dom seu aos que, na fé, se abrem à sua ação (cf. Rm 5,2.3.11; 2Cor 10,17ss; 12,9-10; Tg 1,9-10). Esta confiança nada tem a ver com pretensiosa arrogância (Tg 4,16), mantém viva a alegria da comunhão e sustenta no trabalho, nas tribulações (cf. Rm 5,3) e nas responsabilidades do ministério (FI 1,26; 2,16; cf. também 2Cor 1,12.14; 5,12; 10,8ss; 12,lss; 1Ts 2,19). No corpus paulino encontram-se igualmente alguns outros vocábulos que caracterizam as deformações da exaltação orgulhosa que se manifesta em atitudes de vanglória, de autoexaltação, de arrogância, de cegueira obstinada etc. que proliferam em abundância no homem que falsifica sua dignidade de criatura e de filho de Deus. A análise não pode deter-se aqui. Os qualificativos a que me referi geralmente são mencionados em grupos terminológicos junto com outros a que se acham estreitamente unidos ou contrapostos e dos quais não se pode prescindir quando se tenta explicar seu significado.”[2]

Aspecto teológico-ascético

‘Tramemos contra o justo, porque ele nos incomoda, é contrário às nossas ações... Tratemo-lo com ultrajes e torturas, a fim de conhecer sua doçura e estarmos cientes de sua paciência. Condenemo-lo à morte infame’(Sb 2,12.19-20). O justo humilhado e perseguido pelos ímpios é Cristo. Em sua vida e especialmente em sua paixão verificam-se de modo impressionante, as particularidades descritas no livro da Sabedoria. Sobre ele, inocentíssimo, se lança a raiva dos que se sentem ofendidos pela santidade de sua conduta e de sua doutrina. ‘O mundo me odeia... dirá um dia - porque eu dou testemunho contra ele de que as suas obras são más’ (Jo 7,7). O Filho de Deus que se humilhou voluntariamente até fazer-se homem, até fazer-se ‘pecado’ para substituir-se aos homens pecadores, assim também voluntariamente aceita ser humilhado pelos mesmos a quem veio salvar. Procurado pelos judeus que o querem matar, Jesus foge várias vezes de suas mãos ‘porque não era ainda chegada sua hora’ (ibidem, 30), mas não foge das contradições e humilhações. Verdade eterna, aceita ele ser tratado como mentiroso; bondade infinita, como malfeitor; sabedoria incriada, como louco; mansidão sem limites, como subversivo; Filho de Deus, como endemoninhado. As humilhações de Cristo resgatam o homem do orgulho e, ao mesmo tempo, lhe dão força para segui-lo no caminho da humildade. ‘Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração’ (Mt 11,29).  A humildade autêntica parte do coração, da convicção íntima e profunda da própria insignificância diante de Deus. Enquanto se humilhou Jesus, esquecendo sua dignidade de Filho de Deus, o homem, para ser humilde, deve recordar o que é: criatura subsistente não por virtude própria, mas só pelos dons recebidos de Deus, e criatura que, tendo pecado, caiu em estado de miséria moral. A consciência de tudo isto deveria tornar o homem profundamente humilde e, todavia, o orgulho está nele tão vivo, que lhe é sempre dificílimo humilhar-se e, ainda mais, aceitar ser humilhado. Só a graça proveniente das humilhações de Cristo pode ajudá-lo a firmar-se na sincera humildade de coração. ‘Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus: ele, de condição divina...aniquilou-se a si mesmo’ (Fl 2, 5-7). Estas palavras do Apóstolo jamais serão bastante meditadas. São todos os cristãos chamados a seguir Jesus no caminho da humildade e para tanto é necessário ‘aniquilar-se a si mesmo’, ou seja, livrar-se do orgulho, aceitando o que o destrói: as humilhações. Antes de tudo, a humilhação de verificar as próprias deficiências, faltas, infidelidades e, depois, as humilhações externas, decorrentes de serem os próprios limites, defeitos e erros notados pelos outros. Querem muitos ser humildes, mas poucos aceitam ser humilhados! Pedem muitos a humildade, mas depois, na prática, fogem das humilhações!”[3] “O contexto da humildade no cristianismo é contexto histórico-salvífico. De um lado, vincula-se à complexa situação mediante a qual o homem se rebelou contra o projeto de Deus na própria origem de sua história: de outro, prende-se à libertação da situação humana que ocorre em Jesus Cristo. A revelação neotestamentária enfatiza repetidas vezes que o caminho pelo qual o homem deve caminhar agora é caminho de humilhação e que ele é consequência de decisão de Deus. ‘Visto que o mundo por meio da sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus, aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar aqueles que creem’ (1Cor 1,21). Este pensamento volta a emergir em Rm 1,28: ‘Como não julgaram bom ter o conhecimento de Deus, Deus os entregou à sua mente incapaz de julgar...’ A percepção do abismo que separa a condição em que vive o homem e a condição das aspirações alimenta permanentemente a tentação de frustração, de revolta e de repulsa. Reconhecer a realidade tal como é, aceitar a explicação que nos é dada a respeito dela, seguir o remédio proposto são um conjunto de atitudes que submete o homem à prova radical. Nesse contexto, nasce ou morre a humildade. Sua raiz última, o critério de avaliação de suas exigências, não é um sentido abstrato de moderação e de racionalidade. A humildade é o ‘caminho’, a pedagogia escolhida por Deus, e a ela o homem deve conformar-se em seu percurso. Os acontecimentos, os conflitos que o põem a prova, incluem-se num plano misterioso, no qual o homem deve aceitar-se, deixar-se tomar, confiar-se sem limites e sem reservas, com liberdade e amor. É vida humilde rejeitar a visão da vida qualificada como ‘louca sabedoria deste mundo’ (lCor 1,20), abrir-se à visão revelada em Jesus Cristo e descrita com grande imediatez em lCor 1,17-31. Não se trata da simples passagem de um modo de ser para outro mais racional, mais humano ou mais rigoroso; trata-se da conversão que parte do reconhecimento dos ‘ídolos’ para aceitação da revelação do Pai em Jesus Cristo.
A humildade é condição radical, em que amadurece o ‘sim’ a Deus, que exige ‘renunciar ao maligno’ para aderir a Jesus Cristo no caminho da encarnação (cf. Ordo do batismo). É o antipecado, a anti-soberba, o esvaziamento da situação, de hoje e de sempre, que induz o homem a não reconhecer Deus-Homem, a rebelar-se e a suplantá-lo, a contestar e contrariar seu projeto sobre o homem. É adesão ao caminho construído por Jesus com a obediência de sua carne (cf. Cl 1,22; Ef 2,14-16). A humildade é relação pessoal, é escolha e eleição de Deus em Jesus Cristo e rejeição do maligno e de suas obras. Quando, desta dimensão radical, se passa para a determinação das atitudes, dos modos de pensar em que o humilde se expressa a nível individual e social, verifica-se um deslizamento de planos em que as situações se tornam falsas quando absolutizadas e consideradas unívocas. A humildade fundamental concretiza-se e cresce nas visualizações históricas, mas não se reduz a nenhuma de suas manifestações; exige-as, vivifica-as e transcende-as. Quando o homem deixa de extrair sua inspiração da comunhão de vida com o Espírito e começa a inspirar sua vida e sua conduta nas prescrições, nas normas, nos modos de agir, verifica-se inversão de planos e o homem se converte em servo da instituição em vez do servo do Espírito. A humildade passa de reconhecimento de louvor do plano de Deus em Jesus Cristo para a obediência das formas de cortesia social, das regras do bom viver e da prudente e digna organização das relações. O humilde de coração vive e cresce em Jesus Cristo, deixa-se levar por seu Espírito ao avaliar situações e pessoas com verdade e retidão. O Espírito de Deus em Jesus Cristo é fonte única e suprema, em que se inspira o crente e que o vivifica ao assumir com plena liberdade interior as instituições e as normas; não as falsifica, não as idolatra, mas toma-as no que são e resiste à sua pretensão de impor-se como absoluto, como fonte primária de avaliação e de inspiração. Este processo de reconhecimento das hierarquias, que leva a dar e a conservar o primeiro lugar para o que é primordial, começa com a conversão e perdura ao longo da existência. Implica a comoção e a reestruturação total da vida. Não se consegue com base em correções superficiais do ponto de vista, realizadas com sagaz destreza psicopedagógica e amadurecidas sob a influência de raciocínios rigorosamente dialéticos. Ao reconhecimento de Deus em Jesus Cristo chega-se unicamente pelo caminho da conversão e nela lança raízes e adquire vida a humildade fundamental, que é o primeiro componente deste misterioso processo a que João dá o nome de nova geração ou nascimento de Deus. Em Jesus Cristo e de Jesus Cristo nasce o homem de coração manso e humilde e aprende a ser manso e humilde de coração. Jesus Cristo, que é a fonte da humildade, constitui também seu paradoxo e seu escândalo. Ele é para o homem soberbo a pedra rejeitada (Mt 21,42 e paralelos), sinal de contradição (Lc 2,34) e pedra de toque. Quem o aceita encontra com ele a redenção e a liberdade, ao passo que quem o rejeita vive a angústia da negativa (At 26,14). Jesus Cristo é a prova suprema que o homem deve superar para tornar-se e manter-se humilde. Aprender a viver como homem salvo significa escutá-lo e seguir sua doutrina.
Jesus, que revela ao homem o caminho humano, se nos apresenta de forma desconcertante. Seu caminho e seus julgamentos não são os que o homem quereria que fossem (cf. Is 55,8; Rm 11,33). Seu caminho é caminho de pobreza, de rigor, de mansidão, que contrasta com a aspiração à força, ao poder, ao resultado seguro, etc. Inspirar-se num crucificado, num vencedor que sai vitorioso mediante a derrota, é loucura para quem não crê e é poder de Deus para quem crê (cf. lCor 1,18ss), mas é o poder do mistério, da abnegação total e sem reservas (cf. Mt 16,24; Mc 8,34; Lc 9,23). Seu caminho se manifesta e cresce na humilhação, na contrariedade permanente de ter que viver ‘o escândalo e a loucura da cruz’ (cf. lCor 1,24), que deixa de ser tal quando o resíduo judeu e gentio, que continua vigente no convertido, é vencido e superado. A ‘loucura’ suprema, a crise mais radical deste caminho é a morte, a irracionalidade do dever morrer e das condições em que se verifica. A morte é o xeque-mate, a cilada que ameaça todos os projetos e todas as iniciativas ‘racionais’. Ninguém é capaz de oferecer garantias à pessoa que toma e realiza tais iniciativas. Por mais que o homem tente raciocinar sobre o assunto, esta manifestação externa do não racional põe limite e empecilho. Jesus Cristo se apresenta como aquele que venceu a morte (2Tm 1,10), mas depois de se haver submetido a ela. O homem que quer vencê-la deve escutar antes aquela frase: ‘se o grão de trigo não morre...’ (Jo 12,24) e a outra: ‘quem ama sua vida perde-a...’ (Jo 12,25). Deus submeteu o homem à humilhação da morte num mundo de libertação redentora não preservativa; será libertado do pecado, do ódio, da inimizade, da injustiça, da afronta, do fracasso, do erro etc., mas somente depois que houver sofrido e quando já tiver vivido o sofrimento da grande distância que separa os desejos das realizações, as aspirações dos resultados.
O plano de Deus, seus silêncios, suas preferências e seus caminhos constituem escândalo permanente para o homem que quer racionalizar, programar, ordenar todas as coisas. Encontra a paz não na eliminação das contrariedades e dos conflitos, mas vivendo-os até o fundo, deixando de se questionar e de se fazer interpelar pela vida, sem pretender eliminar as contradições, vivendo-as e esforçando-se por resolvê-las. A humildade não é um modo de comportar-se ou de pensar, decidido com base numa avaliação pessimista das próprias prerrogativas e possibilidades comparadas de forma falaciosa com as dos outros. É verdade e reconhecimento de Deus; é um ‘sim’ ao Pai em Jesus Cristo, que vive em sua Igreja. O soberbo não reconhece Deus e não se reconhece homem, falsifica as relações, não aceita a soberania de Deus e sua própria criaturalidade. A fuga de Deus é fuga do homem e das próprias responsabilidades. Ele sai desta situação quando começa a aceitar-se como homem, a comprazer-se com o que compraz a Deus (cf. Mt 3,17 par.); isto é, quando não fraciona Jesus Cristo, mas se aceita, se quer e se reconhece nele. A consolação da humilhação de viver é viver a humilhação de converter-se e de fazer-se ‘pequeno’ como criança (Mt 18,4), o que significa ‘nascer’ para a única condição em que é possível o ingresso no reino, escolhendo caminhar pela senda que o Pai preferiu (Mt 11,25).  A humildade não se desenvolve nem amadurece de modo abstrato, porém cresce na prova das humilhações, que impedem os planos e as aspirações do homem. Estas humilhações são indefinidas e é inútil determiná-las. A experiência de cada um leva a localizá-las e a discerni-las. A reação diante destas situações, embora variável, assume fisionomia inequívoca quando se orienta construtivamente para a pessoa. Por isso, a humildade não é atitude abstrata ou de contornos esfumados; é a vida em Jesus Cristo; nele o homem amadurece os comportamentos característicos dos filhos de Deus e cidadãos do reino, a fortaleza que modera a ambição de resolver com a violência o problema humano, a perseverança em caminhar pela senda que ele percorreu e a criatividade para não empobrecer com planos mesquinhos a dignidade da imagem de Deus.
Este ato de confiança realiza-se sem garantias prévias. Dá a vida depois, e não antes, de haver sido aceito. Torna fecundos, porém unicamente os que aceitam a sua vida; razoáveis, mas em sua verdade. O humilde não pratica idolatrias, não faz cálculos, não hierarquiza nem estabelece prioridades, porém antes adere a Cristo-caminho e segue-o onde quer que ele vá. Não cria empecilhos apriorísticos e maniqueus de estilos de existência. Seu único desejo é estar a caminho e, como consequência, trilhar o caminho que é Cristo e em que Cristo o introduz: o que realmente quer é conaturalizar-se com suas preferências. A humildade se robustece no amor; é uma forma de manifestar amor. É aceita e amadurece num contexto de confiança; exime o homem da preocupação de se garantir a si mesmo; atrai-o para quem o ama, fundamenta a paz, que consegue a comunhão com o amado; induz a sintonizar com ele, a tomar sobre si a preocupação e o sofrimento dos outros, a assumir a iniciativa de tornar a vida diferente, de moderar a solicitude e a preocupação consigo mesmo, estabelecendo para todos condições de existência novas.
Este amor não é espontâneo reconhecimento do outro, mas estrutura-se na pobreza e na unicidade. O homem quer dar uma garantia a si mesmo e não aceita ver-se envolvido pelo outro e com o outro; quer ser amado, porém não com o risco da novidade, respeitando o mistério do outro, que exige o abandono dos modelos ‘assegurados e garantidos’ e das normas ‘experimentadas’, para abrir-se em sua própria irrepetibilidade e oferecer inesperadas possibilidades de andamento, compartilhando as responsabilidades e a vida. A humildade amadurece no equilíbrio e na harmonia frágil e delicada entre o amor a si mesmo e o amor aos outros, vividos e vistos na perspectiva do amor de Deus; está unida à realidade da pessoa e tende a corrigir a forma de se representarem as relações e a considerá-las tais como são, e não como se quereria que elas fossem. A distância entre representação e realidade é como que o limite matemático. O homem é o que é, não o que considera que é, e o eu de cada um vive com os outros e se torna osmose com os outros. Desta forma, o caminho da humildade oscila entre o já e o ainda não, num processo sem fim. A meta é chegar a ser o que somos chamados a ser; vencer a falsificação que se aninha na pretensão de conquistar o amor, de sermos amados segundo a representação que o homem se obstina em conseguir. A humildade se nutre e serve de alimento à paz do desejo, vive do equilíbrio que surge da articulação entre ser amado, querer ser amado e amar. Suas opções tornam-se autênticas quando o homem realiza a justiça, quando está contente com Deus e em Deus e trabalha para conseguir que seja mais humana a condição de todos os homens no mundo, para secundar quem e o que permite avançar nesta direção segundo a avaliação de cada situação em particular.”[4]

Aspecto Místico

O primeiro passo na humildade é o primeiro passo no caminho da bem-aventurança, e a consumação da humildade é a perfeição e a plenitude da alegria. A humildade contém em si a resposta a todos os grandes problemas da vida da alma. A humildade é a única chave que dá acesso à fé, inicio da vida espiritual. Pois fé e humildade são inseparáveis. Na perfeita humildade desaparece todo egoísmo e a alma não vive mais para si nem em si mesma, mas para Deus; na humildade a alma se perde de vista, mergulha em Deus e é n’ele transformada. A essa altura da vida espiritual, a humildade atinge a grandeza e seu mais alto grau de exaltação. É aqui que se realiza a palavra ‘todo aquele que se humilha será exaltado’, pois não mais vivendo para si ou no plano humano, o espírito se liberta de todas as limitações e vicissitudes da criatura e da contingência humana e mergulha nos atributos de Deus, cujo poder, cuja magnificência, grandeza e eternidade se tornaram, pelo amor, pela humildade, nossos.
Se não somos capazes de humildade, não teremos capacidade para a alegria, pois só a humildade consegue destruir o egocentrismo que torna a alegria impossível. Existe uma falsa humildade que pensa haver orgulho em desejar a maior grandeza - a perfeição da contemplação, o ápice da união mística com Deus. Essa é uma das maiores ilusões da vida espiritual, pois é somente nessa grandeza, nessa elevadíssima união, que podemos alcançar a perfeita humildade. É fácil, entretanto, ver como ocorre esse engano; e, de certo ponto de vista, não é, afinal, um engano. Pois se considerarmos abstratamente a alegria que há na união mística apenas como algo que aperfeiçoa nosso próprio ser, e nos confere a maior satisfação e a maior felicidade a que possamos atingir, é possível desejá-la com um desejo egoísta e cheio de orgulho. Esse orgulho será tanto maior quanto nosso desejo implicar ser-nos devida, de qualquer maneira, essa consumação, como se a ela tivéssemos direito, como se houvesse algo que pudéssemos fazer para merecê-la.
É assim que a união mística se apresenta ao espírito dos que não compreendem ser a essência dessa união um puro e desinteressado amor, que esvazia a alma de todo orgulho, aniquilando-o aos olhos de Deus, de modo que nada possa subsistir a não ser a pura capacidade de recebê-lo. A alegria do místico amor de Deus brota da libertação total de todo egoísmo, pelo aniquilamento de qualquer sombra de orgulho. Tenhamos o desejo, não de sermos exaltados, mas rebaixados; não de sermos grandes, mas sim, pequeninos a nossos olhos e aos do mundo, pois a única maneira de possuir essa alegria é diminuirmos a ponto de sumir e ficarmos absortos em Deus através do centro do nosso próprio nada. O único meio de possuirmos a grandeza de Deus é passar através do buraco da agulha de nossa própria e absoluta insuficiência. A perfeição da humildade é encontrada na união transformante. Somente Deus pode dar-nos esse grau de pureza por meio do fogo das provações interiores. Seria tolice não desejar essa perfeição. Pois de que serviria ser humilde de um modo que nos impedisse de procurar a consumação da humildade?
Embora intrinsecamente esteja certo desejar a união mística com Deus, temos tanta facilidade em nos enganarmos sobre o sentido dessa união que, por vezes, pode tornar-se o mais perigoso dos desejos. Desejar a Deus é o desejo mais fundamental do ser humano; é a própria raiz de toda a nossa felicidade. Como ser humilde se, a cada momento, estamos atentos em nos ocuparmos com nossa própria pessoa? A verdadeira humildade exclui a exagerada consciência de si próprio; a falsa humildade, porém, intensifica a atenção a nós mesmos a ponto de nos paralisar e não conseguimos mais fazer um movimento ou realizar um só ato sem por em jogo todo um mecanismo complexo de desculpas e fórmulas de auto-acusação.
Se fôssemos realmente humildes não nos importaríamos com nossa própria pessoa. Por que o faríamos? Se fôssemos humildes estaríamos unicamente interessados em Deus e Sua vontade e pela ordem objetiva das coisas e dos valores, tal como são, e não como nosso egoísmo quer que o sejam. Consequentemente, não teríamos mais ilusões a defender. Nossos movimentos seriam livres. Não teríamos necessidade de sermos estorvados por desculpas arquitetadas apenas para nos defender da acusação de orgulho, como se nossa humildade dependesse do que os outros pensam de nós! O humilde consegue grandes coisas com perfeição invulgar porque não está mais preocupado com incidentes tais como seus próprios interesses e sua reputação; não necessita, portanto, de gastar suas forças, defendendo-os. Pois o homem humilde não tem medo do fracasso. Na verdade, não tem medo de coisa alguma, nem de si mesmo, já que a perfeita humildade implica perfeita confiança no poder de Deus, diante do qual nenhum outro poder tem sentido e para quem não existe nenhum obstáculo. A humildade é o sinal mais seguro da força. “[5]

Aspecto prático

“A humildade é uma virtude incontestável. O cristianismo fez dela uma das mais importantes virtudes, condição mesma para viver sua proposta. Pois para reconhecer a majestade e a infinitude de Deus e reconhecer-se criatura finita, pobre e limitada, é preciso ser humilde, ou seja, ter noção exata da própria envergadura e dos próprios condicionamentos. Apesar de o Cristianismo raramente ter sido considerado uma religião humilde, quase sempre associado à arrogância religiosa e ao triunfalismo, e com uma confiança absoluta na verdade superior de seus próprios ensinamentos, a virtude da humildade desempenhou papel central na tradição cristã desde suas origens. Santo Antão a ela se refere como ‘a primeira de todas as virtudes’ e, para Santo Agostinho, consiste na ‘soma total do remédio que nos cura’. Dentro da tradição monástica do Ocidente, o caminho de subida para Deus foi desenvolvido em termos de doze degraus de humildade. E sua importância é tema central na reflexão e nos escritos da maioria dos místicos cristãos, desde Gregório o Grande até o anônimo autor inglês da ‘Nuvem do não saber’ do século XIV; passando pela grande mística carmelita Teresa de Ávila e por João da Cruz até os diálogos espirituais entre Francisco de Sales e Joana de Chantal. Mesmo em tempos em que a importância da humildade possa ter parecido ser virtualmente eclipsada pelo triunfalismo e o poder eclesiástico, continuou a encontrar seu lugar central e inequívoco na obra de grandes teólogos como Tomás de Aquino; e em fundadores e espirituais do porte de Inácio de Loyola, que propõe em seus Exercícios Espirituais levar o retirante ao terceiro grau de humildade, desejando antes a pobreza e a loucura por Cristo do que o prestígio que o mundo dá. E embora a noção de humildade tenha sido olhada como profundamente oposta à ênfase moderna na autonomia humana e na excelência individual, ainda figura com proeminência nos escritos de autores espirituais mais contemporâneos como Simone Weil, Emmanuel Mounier e Jean-Louis Chrétien. Este último chega a afirmar: ‘É bonito que a mais profunda das virtudes tenha uma reputação tão negativa’. Realmente, o que vem a humildade, com seu conteúdo de verdade e modéstia, de simplicidade e verdade, fazer num mundo que canoniza o poder, que vive de aparências, supervaloriza o ter em detrimento do ser e constrói a cada minuto ídolos e fetiches que o possam guindar sempre mais alto nas escalas social e profissional, à frente, nunca atrás, ainda que seja usando os outros para conseguir seu intento? Uma pessoa humilde é malvista em nossa sociedade. Dela diz-se que não tem ambição nem garra, é fraca de personalidade, que não sabe se impor. Mais: é tida como boba, idiota, que não sabe aproveitar as oportunidades e chances que a vida lhe dá e se deixa ultrapassar pelos outros. Não se apega às conquistas conseguidas, não se agarra ao prestígio e ao poder dela emanados, mas deles se afasta, deixando o caminho livre para os adversários e concorrentes. “[6]
“A humildade é pensada e legitimada com base no modo de existir e de se comportar, na própria posição no mundo e nas opções que o homem adota. Antes de conceitualizá-la é necessário vivê-la. Muitas vezes existe um desvio entre o que o homem é e o que pensa ser, e vice-versa, entre a representação de si mesmo, encarnada no modo de ser, e a representação que está unida às proclamações verbais com que o homem se autoqualifica. Quanta mentira se esconde no farisaísmo de muitos comportamentos e declarações de humildade! O parâmetro da temperança e da humildade é a pessoa, não sua representação; é o ser, é o homem que pensa em seu corpo. O corpo, para não reduzir-se a mero invólucro do espírito, deve sintonizar com a orientação do mesmo. O homem de corpo autêntico tem pensamento humilde e supera a dissociação entre vida e pensamento. A humildade é estilo humano, expressa-se no modo de existir, de se situar e de se instalar na realidade.
A proclamação desta possibilidade pode induzir a pensar que já ocorreu, que já se realizou, e a esquecer o fato de que é meta e que deve ser conquistada. Com demasiada frequência, a orientação da vida não é determinada pela mente, porém apontada pelo corpo, que não tem fome na medida e no momento que seriam de desejar e que não secunda o homem na medida e na forma em que poderia fazê-lo. O homem que se educa constrói um organismo homogêneo para sua orientação, para a sua tendência à beleza à harmonia, à saúde, e desenvolve-se segundo critérios ditados pela higiene, pelo esporte e lazer, pela estética etc. Eu diria que o homem não está verdadeiramente em paz com Deus enquanto o corpo não se acha pacificado. O homem constrói para si a casa. O coração, os olhos, os movimentos humildes são reflexo e condição de homem humilde. O corpo dissociado, dividido, ‘separado’ do espírito, falsifica as aspirações que estruturam o homem e aspira, por exemplo, à existência infinita, total e para sempre; sente saudade da totalidade, da plenitude; converte-se em sujeito de cobiça violenta e de ansiedade incontrolada. O organismo dissociado sente saudade de quem falta ao homem, quer tudo para si e substitui o que lhe falta com ansiedade homogênea em relação à sua origem, proporcional à realidade para a qual o homem se orienta. O organismo do homem, estruturado para secundar a tendência de infinito, não perde sua estrutura quando o homem não busca o infinito, mas desintegra-se do complexo em que tinha sentido e desenvolve energia de infinito para realidades finitas. A re-vinculação e a unidade do homem ocorrem não quando o homem se decide a concretizá-las, porém quando de fato as reconstrói.
A humildade não marginaliza o organismo, não priva de seus dinamismos, nem os extirpa; reconstrói a unidade e reequilibra no todo as energias alienadas no desprendimento. A meta não é um corpo que deixe de desejar, mas sim a orientação do desejo para que o homem possa realizar sua missão humana com todo o seu ser. O sujeito desta ação não é o corpo nem a alma, mas o homem; o homem é homem e mulher. Homem-mulher, espírito-corpo, devem unir-se, e a unidade é por Deus e para Deus. O homem vive esta realidade no estado de dissociação; mas ela pode ser superada e tal superação se realiza quando o homem se constrói na humildade e pelo caminho da verdadeira vida.”[7]

Pecado contrário à virtude da humildade: orgulho e soberba

“O vício que se opõe à humildade é chamado orgulho. Pelo orgulho desprezamos a Deus e a ordem estabelecidada por Deus na criação. Passamos a nos preferir a todos e a querer dominar sobre todos, considerando-nos superior a todos. O orgulho é o vício da exaltação da própria excelência, a qual nos leva a cometer todos os demais pecados. Por isso o orgulho é o mais grave de todos os pecados, devido ao desprezo de Deus presente nele, e ele agrava ainda mais os demais pecados.”[8]
São Tomás de Aquino considerou a soberba um pecado específico, embora possa ser encontrado em todos os outros pecados. A soberba é a forma básica ou mãe de todos os pecados. Ela teria sido a responsável pela desobediência de Adão, que provou o fruto proibido com a ambição de se tornar Deus. A soberba leva o homem a desprezar os superiores e a desobedecer às leis. Ela nada mais é que o desejo distorcido de grandeza. Entre as coisas que o homem naturalmente deseja ser está a excelência, mas o excesso desta é o vício capital conhecido como a rainha ou mãe de todos os pecados: a soberba. É natural ao homem desejar a perfeição no bem desejado, porém a soberba consiste em superar a própria medida no desejo de superioridade; além disso, ela é um pecado específico, pois o ato e o hábito se especificam segundo as características formais do objeto. Tomás de Aquino, baseado em Aristóteles, descreve o vicio da soberba como extremo princípio da auto-suficiência por parte do homem, que transforma a virtude da autonomia em um vício: ‘os soberbos são insensatos porque se enganam sobre si mesmos, empreendem tarefas honradas e acreditam que são dignos delas, mas fazem assim resultar só a própria insuficiência’.
De acordo com Tomás de Aquino, podemos entender a soberba em três sentidos: quando alguém se gloria em falso, a que chama de falsidade; quando alguém se gloria de um bem que passa facilmente à cobiça; e quando ela não se dirige ao devido fim, a imprudência. Em qualquer de suas formas, a soberba acarreta uma desordem na vontade, que é precisamente o pecado. A soberba está muito distante da humildade, característica básica de quem possui algum autoconhecimento. É lamentável que algumas pessoas só percebam esses comportamentos no final de suas vidas. [9]

Santa Clara e a virtude da humildade

“O que importa é a verdade do ser. Não é preciso ser grande. A plenitude não está no tamanho, mas na totalidade. O humilde, que sabe que é humilde, que gosta do que é, é pleno, mesmo que não passe de uma microscópica florzinha de musgo na parede. Por menores que sejamos, somos imagem de Deus. Clara, que tinha sido uma pessoa ‘importante’ por sua posição social e que, mesmo no mosteiro, poderia ter se sentido ‘importante’ por ser a fundadora e até carregar o título de ‘abadessa’, não deu a menor importância para nada disso. Tudo que nós acreditamos que já somos foi sendo descoberto aos poucos, na medida em que nos comparamos com as outras pessoas e fomos destacando o que tínhamos de parecido e o que tínhamos de diferente. Para nos conhecermos até o fundo, de verdade, temos que nos comparar a Jesus Cristo, medida do ser humano em plenitude. Como ensinou Santa Clara, a gente se descobre no espelho: pouco a pouco, insistindo em contemplar o que nos assemelha ao modelo eterno. Descobrindo e transformando por purificação. “[10]

Escritos de Santa Clara:

“Desprezando o fausto de um reino da terra, dando pouco valor à proposta de um casamento imperial, você se fez seguidora da santíssima pobreza em espírito de grande humildade e do mais ardente amor, juntando-se aos passos daquele com quem mereceu unir-se em matrimônio.” [11]

“Vejo que são a humildade, a força da fé e os braços da pobreza que a levaram a abraçar o tesouro incomparável escondido no campo do mundo e dos corações humanos, com o qual compra-se (cf. Mt 13,44) aquele por quem tudo foi feito (cf. Jo 1,3) do nada.”[12]

“Admirável humildade, estupenda pobreza! O Rei dos anjos, o Senhor do céu e da terra (cfr. Mt 11,25) repousa numa manjedoura. No meio do espelho, considere a humildade, ou pelo menos a bem-aventurada pobreza, as fadigas sem conta e as penas que suportou pela redenção do gênero humano.” [13]

Fontes Históricas:

“Também disse que a sobredita dona Clara, quando mandava às Irmãs que fizessem alguma coisa, fazia-o com muito respeito e humildade e a maior parte das vezes, preferia fazer ela mesma em vez de mandar as outras.” [14]

“Irmã Benvinda de Perusa, monja do mosteiro de São Damião, disse sob juramento que: dona Clara, outrora abadessa do referido mosteiro de São Damião, foi de maravilhosa humildade, e tinha tão grande desprezo de si, que fazia ela mesma as obras mais vis.” [15]

“A testemunha também disse que, por sua simplicidade, não saberia de modo algum dizer os bens e as virtudes que existiam na santa; sua humildade, a benignidade, a paciência e as outras virtudes que ela possuía em abundância, tanto que cria firmemente que, da Virgem Maria para cá, nenhuma mulher tinha maior mérito que a senhora.” [16]

“Também falou sobre a humildade da senhora, tão grande que ela chegava a lavar os pés das Irmãs e das que faziam o serviço externo. Uma vez, lavando os pés de uma dessas serviçais, foi beijá-los, como costumava, mas a Irmã bateu involuntariamente em sua boca com o pé. A senhora se alegrou por isso, e lhe beijou a planta do pé.” [17]

“Ela, pedra primeira e nobre fundamento de sua Ordem, tratou de levantar desde o começo o edifício de todas as virtudes sobre a base da santa humildade. De fato, prometeu santa obediência ao bem-aventurado Francisco e não se desviou em nada do prometido. Três anos depois da conversão, recusando o nome e o cargo de abadessa, preferiu humildemente submeter-se a presidir, servindo entre as servas de Cristo e não sendo servida. Por fim, obrigada por São Francisco, assumiu o governo das senhoras. Daí brotou em seu coração temor e não enchimento, crescendo no serviço e não na independência. Quanto mais elevada se viu por esse exterior de superioridade, mais se fez vil aos próprios olhos, disposta a servir, desprezível na aparência. Não recusava nenhum trabalho servil. Costumava derramar água nas mãos das Irmãs, assistindo-as enquanto sentadas e servindo-lhes a comida. Custava-lhe dar uma ordem, mas estava pronta a fazer por si. Preferia fazer ela mesma a mandar as Irmãs. Lavava pessoalmente as cadeiras das doentes e as enxugava com seu espírito nobre, sem fugir à sujeira nem ter medo do mau cheiro. Com frequência lavava e beijava os pés das serviçais quando voltavam de fora. Uma vez, estava lavando os pés de uma delas e, quando foi beijá-los, a Irmã não suportou tanta humildade, puxou o pé de repente e bateu com ele no rosto de sua senhora. Esta voltou a tomar o pé da serviçal com ternura e lhe deu um beijo apertado sob a planta. “[18]


[1] Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, p.534-535.
[2] Idem, p.535-536.
[3] Humildade...Sem Humilhação? Vida Cristã, 29/06/2004.
[4] Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, p.538-540.
[5] MERTON, Thomas; Novas Sementes de Contemplação. Petrópolis: Editora Vozes, 1963.
[6] Maria Clara Lucchetti Bingemer; Humildade: uma virtude com ma reputação.
[7] Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, p.541.
8 As Virtudes Anexas.
9 Marcos Roberto Nunes da Costa; Leila Rúbia Costa Silva, Os “Sete Pecados Capitais” segundo Tomás de Aquino. Ágora Filosófica, Ano 1, n.1, jul./dez.2007.



[10] PEDROSO, Frei José Corrêa. O Cristo de Clara: Santa Clara, Jesus Cristo, e uma recuperação do feminino no franciscanismo. Piracicaba –SP: Centro Franciscano de Espiritualidade, 1994.
[11] 2CtIn 6-7.
[12] 3CtIn 7.
[13] 4CtIn 20-22.
[14] ProcC 1,10.
[15] Idem 2,1.
[16] Ibidem 7,11.
[17] Ibidem 10, 6.
[18] LSC 12.

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